29.6.10

Boneca de Pano

BONECA DE PANO




01 hora e 15 minutos, acabo de vir da Cooperifa. Ingresso no cômodo da casa que já foi lavanderia e um dia deixou de ser lavanderia para ser quartinho de estudos e, mais recentemente, virou meu quarto, como um fragmento de madeira vira um porto seguro para um náufrago. Saio do colete salva vidas que é o bar do Zé Batidão e me alojo em outro aqui mesmo, na própria e imensa periferia da Zona Sul de Sampa, meu lugar no mundo, mesmo que ele não queira.




Uma coleção de livros do Monteiro Lobato ficava na prateleira de uma dessas paredes para onde olho agora. Um dia, ainda menina, sete ou oito anos de idade, senti uma vontade desesperada de me esconder. Fui fugindo, sorrateira, de mansinho, pelos cantos da casa, atravessei com meio sorriso os gracejos que os adultos fazem com caçulas, abri a porta (essa mesma porta) e antes de fechar, espiei se ninguém tinha me seguido. Daí pude então desabar. Desde cedo, adotei uma postura de manter firme o peito erguido, o cenho fechado, a voz endurecida, um ar seguro e determinado. Não sei com quem ou onde aprendi isso, mas é um dispositivo, um mecanismo que trago aqui dentro, um acreditar que, se fraquejar, desapareço. Hoje, tenho cá pra mim que essa atitude se assemelha muito com outra que temos que é a de correr esconder bagunças dentro dos armários e debaixo dos tapetes quando uma visita inesperada chega só para descobrir todas nossas fragilidades.




Recordo de brotar uma enxurrada de água dos meus olhos e do susto que levei com a contradição trazida pelo sentimento bom que foi nascendo minutos depois da angústia e junto com as lágrimas. Só depois descobri que esse sentir leva o nome de fé na vida, que é o que nos faz olhar ao redor e buscar uma saída fora e dentro para não arrefecer, porque viver é impossível na tristeza.




Então, percebi em minha frente os livros e o silêncio misterioso que fizeram como se quisessem dizer coisas muito nossas.

Lembro da vontade de aventura secreta e cheia de novidades duvidosas que aquela parede me provocou e a pergunta que me veio ainda hoje é uma das que mais gosto: “por que não?”




Repasso que subi numa cadeira bamba, mas que se manteve firme como quem diz “ trepa aí menina, estou aqui te segurando!”




Subi na mesinha de estudos de pés velhos, contrastando com meus pés inexperientes, cheios da curiosidade dos iniciantes. Foi aí que ferrei o dedão na bic destampada e continuei subindo como se subisse montanha e, pontinha dos pés, puxei “O casamento de Emília.”




Era um desses livros grandes de capa grossa, com ilustrações muito bem feitas, compradas do tiozinho que vendia enciclopédias pelo Ademar a perder de vista e com o qual meus pais mantinham uma conta, igual tinham no bazar Tucano, pra compra de material escolar, porque queriam que a gente tivesse estudos.




Nesse dia eu tinha um ímpeto e um medo que até hoje me vem e sei que não passará, porque é a dúvida de existir que não passa. Talvez, ainda me lembre desse dia porque foi o prenúncio de que isso iria acontecer muitas e muitas e muitas vezes depois...

Emília me seduziu atrevidamente. Dei de mim ao livro segurando seu corpo com a mão esquerda e com a direita percorri capa e contra capa. Nós nos abrimos, não na primeira página, mas bem pela metade, assim como fazemos com as pessoas que não acabaram de nascer, mas que estão nascendo na vida uma das outras.




E daí por diante, me sentei e comecei a ler. Quando me dei conta, tinha anoitecido e eu estava calma, preenchida de um tipo de sentimento diferente do sentimento que me tinha feito entrar naquele lugar. Eu estava modificada. Então, fechei o livro, enchi meu peito de ar e olhei pra parede. Com o juízo de Emília em mim, concluí que aquela tristeza foi grande bobagem, abri a porta, corri até minha mãe e abracei suas pernas.

Sem que tivéssemos falado nada, a gente se entendeu. O que nunca vou saber e não foi necessário, foi o que se passou com ela enquanto eu alcançava o livro comprado a prestações.




Quisera que meu mundo ainda fosse o de Emília e que o final feliz fosse abraçar as pernas de alguém que está na cozinha para serenar minhas angústias do peito.




Quisera ser mais disciplinada e menos sonhadora. Saber talhar palavras de corpo presente para que elas não me amofinassem tanto quando estou sozinha querendo irromper de qualquer maneira. E quisera então, ao não conseguir mais prendê-las, conseguir maneira diferente de não conduzi-las num caminho de metáforas, posto que ainda é um tipo de cárcere e, além disso, dos mais piegas. No entanto, no fundo, no fim das contas, o que nos importa mesmo (a mim e as minhas palavras) não é a forma, mas a natureza do abraço.




Quisera eu ainda ser tão pequena e tão grande que, se soubesse, jamais teria encolhido minhas utopias diante de tanta barbárie.





Alessandra Ferros